Frames de documentário realizado no Assentamento Terra Vista mostram o Rio Aliança nos anos do início da ocupação (em 1997) e atualmente (em 2023)
Uma rede entre três universidades federais (UFMG, UFSB e UFC) e a Teia dos Povos compõe o projeto Políticas da Terra – Encontros da universidade com os saberes e fazeres afro-indígenas, aprovado junto ao Edital Pró-Humanidades (CNPq/MCTI/FNDCT – 420196/2022-6). Voltado para experiências ligadas às lutas pela terra (os assentamentos rurais, as retomadas indígenas e quilombolas, os modos de cultivo de base agroecológica), em metodologias que desfazem a persistente divisão entre sujeitos e objetos do conhecimento, o projeto instaura um processo de pesquisa compartilhada com mestras e mestres de tradições indígenas e afro-brasileiras, ampliando sua presença na universidade, em uma perspectiva contracolonizadora.
Esta pesquisa partilhada com mestras e mestres elabora publicações e materiais audiovisuais, além de experiências de formação prática e teórica conduzidas pelos mestres dos saberes e fazeres da terra, que reúnem estudantes universitários e jovens das comunidades envolvidas no projeto.
Joelson Ferreira de Oliveira e Seu Badu caminham com estudantes da UFMG para plantar mudas na Terra do Bem-Virá, no Assentamento Terra Vista. Foto: Mayra Marques
Por meio do protagonismo de mestras e mestres no processo da pesquisa – de maneira dialógica e simétrica – o projeto tensiona metodologias e teorias de vocação abstrata e universalista, contribuindo para a produção de uma bibliografia aberta à auto-inscrição de pensadores e pensadoras negras e indígenas e à pluralidade de enunciações que marcam suas falas e suas escritas.
Espera-se, como resultados do projeto, a publicação de cinco livros: dois extraídos de cursos oferecidos pelas mestras e mestres (Políticas da terra e Escolas da Terra), e três originados de memoriais de Notório Saber. Estão sendo produzidos ainda cinco retratos audiovisuais de mestras participantes do projeto e dois outros documentários, resultantes das viagens de formação ao Assentamento Terra Vista (Arataca, BA) e à Aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro (Buerarema, BA).
O projeto Políticas da Terra – Encontros da universidade com os saberes e fazeres afro-indígenas organizou duas disciplinas ofertadas a alunos de graduação da UFMG, por meio da Formação Transversal em Saberes Tradicionais. Elas cumprem o propósito de trânsito e de troca entre os territórios onde vivem e atuam as mestras e os mestres e os espaços acadêmicos da UFMG, envolvendo professoras, professores, estudantes de vários cursos da universidade, além de jovens das comunidades.
“Nossa palestra é andando”, nos disse, certa vez, Cacique Babau. Nessa disciplina, cerca de 60 pessoas (entre alunos de graduação e pós-graduação, professores, mestras e mestres dos Saberes Tradicionais) foram convidados a experimentar uma nova perspectiva de formação no território, que relaciona o ato de aprender com a experimentação prática junto à terra, tendo em vista os conhecimentos tradicionais e agroecológicos. O grupo realizou uma viagem ao Assentamento Terra Vista e à Aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, no Sul da Bahia, para realização das atividades conduzidas pelos doutores por Notório Saber titulados na UFMG em 2022 – Joelson Ferreira de Oliveira e Cacique Babau – em práticas que envolveram outras mestras e mestres e também jovens das comunidades. Especialmente enriquecedoras foram as presenças, nessa viagem, de mestre Badu (Silvio de Siqueira), do quilombo Mato do Tição (Jaboticatubas, MG) e das mestras Pedrina de Lourdes Santos (Guarda de Massambike de Nossa Senhora das Mercês, Oliveira, MG) e Isabel Casimira Gasparino (Guarda 13 de Maio de Nossa Senhora do Rosário, Belo Horizonte, MG). Em conversas ao ar livre, caminhadas pela mata e pelos locais de plantio, com direito a banho de rio, e nas refeições cuidadosamente preparadas com alimentos ali mesmo colhidos, os estudantes puderam conhecer a história de luta e de construção nos territórios, além das experiências de cultivo que se amparam na preservação dos rios e das matas, na saúde física e espiritual e na autonomia alimentar.
A disciplina teve como professores parceiros, da UFMG, André Brasil e César Guimarães (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas) e Ana Baltazar, Renata Marquez e Wellington Cançado (Escola de Arquitetura). Pela UFSB participaram os professores Bernard Belisário e Augustin de Tugny (Centro de Formação em Artes). Participaram também da viagem alunos da UFMG, do Laboratório de Retratos Audiovisuais de Mestras e Mestres dos Saberes Tradicionais, conduzido pelos professores Pedro Aspahan (Escola de Belas Artes), César Guimarães e André Brasil.
Veja aqui o vídeo sobre a viagem aos territórios do Sul da Bahia:
Seu Capixaba, em uma aula sobre o plantio do Cacau no Assentamento Terra Vista. Foto: Mayra Marques
A despedida, na Terra do Bem-Virá (Assentamento Terra Vista), com Mestre Joelson e Mestra Pedrina. Foto: Mayra Marques
Lições de política com Cacique Babau. Foto: Mayra Marques
Aprendendo a fazer a tintura do jenipapo com os jovens tupinambá da Serra do Padeiro. Foto: Mayra Marques
Sob a proposta de uma imersão nos saberes tradicionais relacionados aos cantos dos Caboclos e Encantados, presentes nas culturas indígenas e afro-brasileiras, as aulas dessa disciplina foram conduzidas por mestras e mestres que vivenciam e transmitem esses conhecimentos em três diferentes contextos étnicos: Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe e Tupinambá. Nessa perspectiva, a disciplina criou um espaço de escuta para os cantos e saberes trazidos por Caboclos e Encantados, transmitidos pela presença e pela voz de Antônia Braz Santana (Mestra Japira), Maria da Glória de Jesus, Maria Muniz (Mestra Mayá) e Cacique Nailton Muniz Pataxó. Suas histórias revelam a luta pela preservação territorial, a saúde física e espiritual, e a resistência frente às adversidades e aos ataques conduzidos por aqueles que querem expropriar suas terras.
O livro Sem terra não tem cinema, de Isael Maxakali, é a primeira publicação do projeto Políticas da Terra – Encontros da universidade com os saberes e fazeres afro-indígenas. A edição impressa e digital, em parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social e o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG, faz parte de uma coleção especial que abriga a publicação dos memoriais de mestras e mestres dos saberes tradicionais titulados como doutores por Notório Saber pela UFMG (pela resolução aprovada em 2020).
Lançamento do livro de Isael Maxakali (na foto), durante o X Colóquio Cinema, Estética e Política (UFMG). Fotos: Luis Nascimento
Sem terra não tem cinema foi editado por André Brasil e Roberto Romero e, além da trajetória biográfica de Isael Maxakali, liderança Tikmũ’ũn que recebeu o título de doutor em Comunicação Social por Notório Saber na UFMG, traz textos de Renata Marquez, Joana Brandão Tavares e do próprio Isael.
Cineasta, professor, artista visual e conhecedor de um vasto repertório de cantos, Isael Maxakali se vale do cinema como um espaço de encontro com os yãmĩyxop ou povos-espírito com quem os tikmũ’ũn mantêm relações de adoção, troca, aliança e cura. Seus filmes vinculam a terra, os corpos e os cantos, produzindo trânsitos entre o visível e o invisível da imagem. Morando atualmente em uma terra retomada, próxima a Teófilo Otoni (MG), Isael Maxakali se dedica à construção da Aldeia-Escola-Floresta, uma experiência de transmissão, aprendizado, criação e reflorestamento na qual o cinema e os desenhos se avizinham aos cantos em uma pedagogia política e estética junto à terra.
Também fazendo parte do projeto Políticas da Terra, estão em preparação mais dois livros da Coleção Notório Saber: um dedicado ao Mestre Bengala (José Bonifácio da Luz), da Guarda de Congo do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, da comunidade quilombola dos Arturos (Contagem, MG), a partir do memorial para a concessão do título de Doutor em Música por Notório Saber, conferido pela UFMG; e o outro dedicado a Sueli Maxakali, artista, cineasta, tradutora e pesquisadora tikmũ’ũn, a partir do memorial para a concessão do título de Doutora em Letras por Notório Saber, também pela UFMG.
Estão em preparação ainda dois outros livros previstos pelo projeto: Políticas da terra e Escola da Terra, ambos extraídos dos cursos oferecidos no âmbito do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.
Na esteira da série de retratos audiovisuais que vêm sendo produzidos pela Formação Transversal em Saberes Tradicionais, o projeto Políticas da Terra –Encontros da universidade com os saberes e fazeres afro-indígenas prevê a realização de um conjunto de video-retratos de mestras e mestres das comunidades participantes. Aqui, os retratos audiovisuais nascem de uma escuta atenta e sensível capaz de acolher a trajetória de vida e o pensamento de cada mestra e mestre, assim como o vínculo com a história das comunidades às quais pertencem. Atenta-se à cena sensível e aos modos de enunciação, à temporalidade própria de cada situação, em um resultado que se desvia do regime da informação, em uma mediação discreta capaz de reforçar o valor de presença (contingencial, singular, não controlada) daquele que toma para si a palavra, em uma relação fortemente dialógica.
No âmbito do projeto, já foram filmados e estão em fase de montagem os retratos de Antônia Braz Santana – Mestra Japira (Liderança e zeladora dos saberes pataxó, pajé da aldeia Novos Guerreiros, na Bahia, e Doutora em Educação por Notório Saber pela UFMG); de Maria da Glória de Jesus Tupinambá e do pajé Seu Lírio Tupinambá (lideranças da Aldeia Serra do Padeiro, na Bahia); de Maria Muniz (Mestra Mayá, professora e liderança da Terra Indígena Caramuru Paraguassu, na Bahia, e Doutora em Educação por Notório Saber pela UFMG); de Solange Santos, de Seu Lôro (Lourisval Mendes) e seu Capixaba (Airton Baltazar), lideranças do Assentamento Terra Vista, na Bahia.
Retratos de Japira Pataxó, D. Maria da Glória e Seu Lírio, Mestra Mayá, Seu Capixaba e Seu Lôro. Fotos: Pedro Aspahan
Frames dos vídeo-retratos de Solange Santos e Cacique Naílton.
O retrato audiovisual de Cacique Nailton Muniz Pataxó (liderança da Terra Indígena Caramuru Paraguassu e Doutor em Comunicação por Notório Saber pela UFMG) foi lançado no Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas. No lançamento, reafirmamos o apoio e a solidariedade ao povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, e a Cacique Nailton, que foi ferido, vítima de uma tentativa de homicídio, tendo sua irmã, a pajé Nega Pataxó, brutalmente assassinada por um grupo de fazendeiros autodenominado Invasão Zero, sob o apoio da polícia da Bahia. Ao longo do retrato, Cacique Nailton rememora em detalhes o histórico de luta pela retomada de 54 mil hectares de terra que constituem o Território Caramuru-Catarina Paraguassu no sul da Bahia.
O projeto Políticas da Terra – Encontros da universidade com os saberes e fazeres afro-indígenas concedeu, a partir de junho de 2024, cinco bolsas de pesquisa (Apoio à Difusão do Conhecimento do CNPq) a mestras e mestres participantes, pelo período de um ano.
Seu Badu (Silvio de Siqueira) é quilombola da comunidade do Mato do Tição (Jaboticatubas, MG). Sexto filho do casal Benjamin José de Siqueira e Josefa Basílio dos Santos, é mestre do Candombe do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e da Folia de Reis, benzedeiro, raizeiro-homeopata, lavrador e cultivador da agricultura livre de agrotóxicos. Praticante do ofício do que ele denomina medicina natural e cuidados da saúde por meio da natureza, trabalhará na formação de jovens do Assentamento Terra Vista, na Bahia, no combate à Vassoura de Bruxa e outras pragas. Para tanto, mapeará as espécies fúngicas presentes nas matas e lavouras do assentamento e ensinará o preparo de técnicas de cura da terra (homeopatias, radiestesia, nosódios e florais).
Solange Brito dos Santos é liderança do Assentamento Terra Vista, defensora da biodiversidade e praticante da agroecologia. Integra a Rede de Mulheres Arte da Terra, que se dedica ao plantio e cultivo de essências florestais para a produção de óleos essenciais. Solange atuará no trabalho partilhado de montagem de retratos e documentários realizados junto ao Assentamento Terra Vista e da elaboração de seu memorial, a ser apresentado como requisito para a candidatura ao título de Notório Saber junto a UFMG. Será ainda uma importante mediadora no trabalho de Seu Badu com os jovens do Assentamento.
Maria da Glória de Jesus, liderança política e religiosa da Aldeia Tupinambá Serra do Padeiro, em Buararema, Bahia, é lavradora e conhecedora do bioma da Mata Atlântica. Atua na luta pelos direitos de uso e preservação da terra em sua comunidade. Como pesquisadora, a mestra atuará, inicialmente, no trabalho partilhado de montagem dos materiais audiovisuais gravados na Aldeia Tupinambá Serra do Padeiro. Dona Maria da Glória participará ainda da construção de seu memorial, a ser apresentado junto à UFMG como requisito para sua candidatura ao título de Notório Saber.
Isabel Casimira Gasparino é herdeira da coroa de sua avó, Dona Maria Casimira, fundadora do Reino Treze de Maio (em 1944) e de sua mãe Dona Isabel Casimira das Dores, ocupando hoje, o cargo de Rainha Conga das Guardas de Congo e Moçambique Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e da Federação dos Congados do Estado de Minas Gerais. Ela desenvolverá um trabalho partilhado com Seu Badu (Sílvio de Siqueira), acolhendo os lavradores e agricultores que farão um curso na comunidade quilombola do mestre. Pela sua atuação e experiência junto ao trabalho de preservação da memória e do patrimônio imaterial das tradições afro-brasileiras em Belo Horizonte, a mestra será uma importante interlocutora no âmbito das atividades que o projeto desenvolverá junto aos museus indígenas do Ceará, em particular do Kanindé. Além disso, a partir da sua experiência de cineasta e protagonista de diferentes registros audiovisuais (ela co-dirigiu o filme A Rainha Nzinga chegou, rodado entre Brasil e Angola), atuará como consultora dos nossos trabalhos de filmagem e montagem dos video-retratos e documentários previstos na segunda etapa do projeto.
Cássia Cristina da Silva (Makota Kidoiale) é liderança do Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, reconhecido, desde 2007, pela Fundação Palmares, e Patrimônio Cultural Imaterial da capital mineira desde 2017. Ela realizará uma pesquisa sobre a universidade, seus contextos institucionais e formas de produção, transmissão e extensão do conhecimento do ponto de vista de uma intelectual quilombola com vistas a alargar possibilidades de inserção para mestres e mestras de Saberes Tradicionais no contexto acadêmico. Além disso, Kidoaile será uma interlocutora muito importante nas articulações com as mulheres do Assentamento Terra Vista e da Teia dos Povos, trabalhando ao lado de outra mestra, Solange Brito Santos, liderança do Assentamento Terra Vista.
Seu Badu conversa com estudantes durante a formação no Assentamento Terra Vista, em 2023. Foto: Mayra Marques
Seu Badu em sua primeira visita ao mar. Na foto, de Luciana Oliveira, ele é batizado pela Cacica Fia Tupinambá, junto com Isabel Casimira (Belinha) e Joelson Ferreira de Oliveira.
Solange, Belinha e Seu Badu, em um café na casa de Seu Lôro, no Assentamento Terra Vista. Foto: César Guimarães
Entre as folhas e os cantos, Dona Maria da Glória conversa com alunos em um lajedo na mata da Serra do Padeiro. Foto: César Guimarães